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Tolerância Ativa e a Trimembração do Organismo Social

Ute Craemer

10/2004

            

Texto inspirado pela palestra de Rudolf Steiner, "Aspecto Interior do Enigma Social" proferida em Zurique, em 11 de fevereiro de 1919, que consta no GA 193.

Mais do que nunca, o século 21 pede que pensemos como organizar a sociedade, saindo do conceito da centralização do Estado, estruturando o organismo social, com vários órgãos que têm sua tarefa específica e seus valores específicos.

Há um aspecto trimembrado no nosso corpo, na nossa alma e também na sociedade. A trimembração corporal se manifesta através do sistema neuro-sensorial (nervos e órgãos sensoriais), do sistema rítmico (coração e pulmão) e do sistema dos membros e do metabolismo. A nossa alma se expressa através do pensar, do sentir e do querer. E a sociedade se estrutura através da vida espiritual, com as vertentes educacional e cultural, da vida jurídica, com as vertentes política e social, e da vida econômica, com a produção, o consumo e a distribuição. Estes três membros constitutivos da sociedade obedecem às leis próprias e aos ideais: liberdade para a vida cultural e espiritual; igualdade na vida jurídica e no Estado; e fraternidade na vida econômica. Da mesma maneira que existem leis que regem nosso corpo, existem leis que permitem que cada um daqueles membros possa agir de uma maneira saudável para o bem de cada indivíduo e para o bem da humanidade como um todo. Esse aspecto exterior da trimembração social pode ser pensado e observado na estruturação social.

Rudolf Steiner chama atenção ao aspecto interior do organismo social. A vida espiritual e cultural nasce dos impulsos individuais. Um pouco antes de nascermos captamos certas forças das hierarquias que nos conduzirão durante a vida terrena às comunidades espirituais que estão relacionadas conosco. Da vida antes do nascimento chegam dons, talentos e habilidades formando os germes da vida cultural. Assim, a vida espiritual terrestre deriva da iniciativa individual de cada ser humano, em plena liberdade, e faz com que o indivíduo se junte a outros indivíduos com interesses comuns criando manifestações culturais, educacionais e espirituais diferenciados. Em resumo, a vida espiritual e a cultural têm uma forte ligação com agrupamentos de pessoas livres, com a cooperação entre os seres humanos, e assim se liga fortemente ao acontecimento central da evolução da terra que é o mistério do Gólgota. É um engano pensar que o impulso de Cristo pertence ao homem individual. Ele pertence à comunidade humana. A relação de Cristo não se dá através de uma ligação de um indivíduo com Cristo. O essencial é que Cristo viveu, morreu e ressuscitou para a humanidade inteira e não para uma pessoa individualmente. Por isso Cristo é ligado intimamente às comunidades que cultivam a vida educacional e cultural no sentido da compreensão e do amor a qualquer ser humano.

Bem diferente se constitui a vida jurídica. Ela se desenrola somente na terra, entre nascimento e morte. Tudo que tem relação com o direito, por exemplo o direito do uso da terra, o direito à segurança, ao desenvolvimento, à saúde têm a ver unicamente com a nossa passagem no mundo terrestre. "Dá a César o que é de César, a Deus o que é de Deus", disse Cristo. Ou seja, o Estado não pode intrometer-se na vida cultural e educacional. Sua tarefa é garantir o direito à educação, sem interferir na estruturação filosófica da escola, permitindo a auto-gestão na elaboração do currículo escolar.

A vida econômica é o terceiro membro da sociedade. Se nós nos concentramos unicamente no fato de sermos inseridos na vida produtiva e do consumo, tornamo-nos um animal pensante. A vida econômica tem uma tendência a nos pressionar ao sub-humano. O que nos salva é a vida espiritual e a vida dos direitos que o animal não possui. A economia, entretanto, pode nos despertar para algo novo: a fraternidade. Parece um paradoxo mas na vida econômica reside uma grande chance para cada ser humana, uma chance que surge através da nossa consciência . Podemos perceber que a vida econômica é uma troca e esta troca pode se basear no ideal da fraternidade, no ideal da solidariedade. De onde vem o feijão que comemos, a roupa que trajamos, o computador que usamos? Eu dependo do outro, quer seja no Brasil ou fora do Brasil, para poder viver. Perguntas surgem: quem são as pessoas que produzem o que eu consumo? Como elas vivem, em que acreditam etc. Um interesse social, sentimentos de comunhão podem acordar não só para as pessoas mais próximas, mas para a toda humanidade. O conceito de globalização se amplia para uma globalização não só econômica, mas um interesse profundo em cada ser humano no mundo, no colorido específico de cada indivíduo, de cada grupo, de cada povo. O indivíduo é importante porque sua contribuição enriquece o grupo através das suas habilidades e talentos ao mesmo tempo que se enriquece com o convívio e a cooperação do grupo.

A questão é como chegar a um convívio tolerante, respeitoso quanto às diferenças culturais, caracterológicas, étnicas, etc, sem perder sua própria identidade, sua identificação cultural e seu ponto de vista. E como atuar concretamente seguindo esse ideal de uma globalização ampliada pela fraternidade?

Seguem trechos da palestra de Rudolf Steiner que possam incentivar uma reflexão para esses assuntos:

"Em lugar de ter interesse unicamente na minha própria maneira de pensar no que eu considero correto, devo desenvolver um interesse genuíno por toda opinião que encontrar, por mais que possa considerá-la errônea. Quanto mais o ser humano se orgulha de suas próprias opiniões dogmáticas e se interessa apenas por ela, tanto mais ele se afasta nesse momento da evolução do mundo do Cristo. Quanto mais ele desenvolver um interesse social pelas opiniões de outras pessoas, mesmo considerando - as errôneas - quanto mais luz ele receber em seu próprio pensar a partir das opiniões dos outros - tanto mais ele consumará no íntimo da sua alma ao dizer de Cristo.

Cristo disse: 'O que quer que tenhas feito ao menor desses meus irmãos foi a Mim que o fizeste'. O Cristo nunca cesse de se revelar sempre de novo aos homens - até o final dos tempos terrestre. E assim Ele fala hoje para aqueles que querem escutá-lo:

'No que quer que o menor de teus irmãos esteja pensando, deves reconhecer que sou Eu que estou pensando nele; e que Eu entro em teus sentimentos sempre que estabeleceres uma relação entre o pensamento do outro com o teu próprio e sempre que sentires um interesse fraterno pelo que se passa na alma do outro. Qualquer que seja a opinião, qualquer que seja o ponto de vista sobre a vida que descobrires no menor de teus irmãos, nisto estarás buscando a Mim'. Assim fala o Cristo para nossa vida de pensamento - o Cristo que deseja revelar-Se de uma nova maneira - o tempo está próximo - para os seres humanos do Século XX...

Nós não o encontraremos se ficarmos presos egoisticamente a nosso próprio pensamentos, mas somente se relacionarmos nossos próprios pensamentos com os de outras pessoas, se expandirmos nosso interesse para abraçar com tolerância interior, tudo que é humano, e dissermos para nós mesmos: 'Pelo fato do meu nascimento eu sou uma pessoa preconceituosa; só através de um renascimento num sentimento todo abrangente de irmandade pelos pensamentos de todos os seres humanos, encontrarei em mim mesmo o impulso que em verdade que, em verdade é o impulso de Cristo. Se eu não olho para mim mesmo somente como fonte de tudo que penso, mas se me reconheço nas profundezas de minha alma, como um membro de toda a comunidade humana' então, meus caros amigos, um caminho para o Cristo está aberto. Este é o caminho que deve ser caracterizado hoje como o caminho para o Cristo através do pensamento. Sério auto-treinamento de forma a obtermos uma percepção verdadeira para estimar os pensamentos de ouros e corrigir vieses em nós mesmos - isto devemos tomar como uma das tarefas mais sérias da vida. Pois a não ser que isto tenha lugar entre os homens, eles perderão o caminho para o Cristo. Este é hoje o caminho pelo pensamento.  

O outro é o caminho através da vontade. Aqui também as pessoas estão muito viciadas num falso caminho, que não leva ao Cristo mas as afastam dele. E nesse outro âmbito devemos novamente encontrar o caminho para Cristo. A juventude ainda preserva algum idealismo, mas em sua maior parte a humanidade hoje é seca e pragmática. E os homens se orgulham do que tantas vezes é chamado de técnica prática, mas o termo é sempre usado em sentido estreito. A humanidade hoje não quer saber de idéias que são extraídos de fonte do espírito. A juventude ainda tem estes ideais... Mas o que é esse idealismo juvenil? É uma coisa bela, uma coisa grandiosa - mas não deveria ser suficiente para os seres humanos, pois este idealismo juvenil está de fato vinculado ao Ex Deo nascimur, com a dimensão do Divino que identificamos com o aspecto de Jeová (no sentido de ser 'natural', 'inato' - n.t.). E é justamente isto que não deve permanecer suficiente, agora que o Mistério do Gólgota foi realizado na terra. Algo mais é requerido - idealismo deve brotar do desenvolvimento interior, da auto-educação. Ao lado do idealismo inato da juventude, devemos cuidar que na sociedade humana se adquira algo distinto - precisamente um idealismo adquirido: não meramente o idealismo que brita dos instintos e entusiasmo de juventude, mas um que é nutrido, obtido por sua própria iniciativa e que não esvanecerá com o passar da juventude. Isto é algo que abre o caminho para Cristo pois - mais uma vez - é algo adquirido entre o nascimento e a morte...

Não perguntem hoje por caminhos abstratos para o Cristo; peçam por estes dois caminhos concretos. Busquem compreender o caminho através do pensamento, que consiste em se tomar interiormente tolerante com relação às opiniões da humanidade como um todo, e desenvolvendo interesse pelos pensamentos de outros homens. Busquem também o caminho através da vontade - lá vocês não encontrarão nada abstrato, mas uma necessidade inescapável de cultivar idealismo em si mesmos. E se vocês cultivarem idealismo em si mesmos. E se vocês cultivarem este idealismo, ou se o introduzirem na educação dos jovens - 0 que é particularmente necessário - então vocês terão algo que inspira as pessoas a não fazer apensa o que o mundo exterior os impele a fazer. Pois deste idealismo surge a resolução de fazer mais do que o mundo dos sentidos sugere - de atuar a partir do espírito. Quando nossas ações brotam deste idealismo adquirido estamos atuando em sintonia com as intenções do Cristo, que não desceu dos mundos supra-terrestres para consumar fins meramente terrestres. Ele desceu do alto para a terra para consumar um propósito supra-terrestre. Nós só cresceremos em direção a Ele se cultivarmos idealismo em nós mesmos, de tal maneira que Cristo, que representa o supra-terrestre sobre a terra, possa atuar através de nós. Só no idealismo adquirido pode se realizar a expressão de Paulo sobre o Cristo: 'Não eu mas Cristo em mim'...

Quem quer que desenvolva um idealismo adquirido em si mesmos, este terá amor pela espécie humana... Você pode pregar quanto quiser dos púlpitos, dizendo às pessoas que devem amar-se uns aos outros: é como pregar para um fogão. As mais excelentes exortações não persuadirão o fogão a aquecer o ambiente. Ele aquecerá o ambiente bem se o nutrirmos com carvão - não há necessidade de pregar que é o seu dever aquecer o ambiente. Exatamente da mesma forma se pode ficar pregando para as pessoas: amor... amor, amor... são apenas sermões, meramente palavras. Lutem de preferência para que as pessoas possam experimentar um renascimento do idealismo, para que ao lado do idealismo inato possam desenvolver em suas almas um idealismo que persiste pela vida, então... então se despertará um calor da alma no amor de ser humano para ser humano. Na medida em que vocês nutrirem idealismo em si mesmos, nesta mesma medida serão levados para fora do egoísmo em direção a uma preocupação com outros seres humanos.

E se vocês seguirem estes dois caminhos, o caminho através do pensamento e o caminho através da vontade, que eu lhes mostrei com vistas à renovação da Cristandade; há uma coisa que certamente irão experimentar e descobrir. A partir de um pensar que é interiormente tolerante e interessado nos pensamentos de outros e a partir de um querer renascido através da aquisição de idealismo, algo desabrocha. E isto pode ser descrito somente como um senso refinado e elevado de responsabilidade por tudo que se pensa e que se faz. Esse sentimento elevado de responsabilidade nos leva a dizer: 'Posso justificar o que estou fazendo ou pensando, não meramente com referência às circunstâncias imediatas de minha vida e ambientes, mas à luz de minha responsabilidade diante do mundo supra-sensível, espiritual?'...

Isto nos chega como uma advertência solene, quando se busca este duplo caminho para o Cristo - é como se um Ser se colocasse atrás de nós, olhando sobre nossos ombros e dizendo repetidamente: 'Não és responsável apenas frente ao mundo ao redor de ti, mas também, frente ao mundo Divino-Espiritual por todos os teus pensamentos e todos os teus atos... É este Ser que nos conduz verdadeiramente para o Cristo, que passou pelo Mistério do Gólgota'.  

Poderíamos pensar que tudo isso é inalcançável, ilusório. Mas observamos os germes brotando desde a 2a. Guerra Mundial no movimento pela paz, na Annesty International, nas milhares de comunidades da sociedade civil que cada vez mais conscientemente procuram esse caminho de tolerância ativa. Como consta na Declaração dos Direitos Humanos da ONU: É na mente dos homens que nasce a guerra e na mente dos homens que devem ser construídos os baluartes da Paz. E gostaria de acrescentar: não só na mente, mas no coração e nas mãos."

* Agradecemos a tradução do texto de Rudolf Steiner, realizada a partir da versão inglesa, por J. Schoenmaker.

 

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