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O desenvolvimento do terceiro setor na perspectiva da ecologia social
Jos Schoenmaker
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2/2003
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O desenvolvimento do terceiro setor
na perspectiva da ecologia social
Resumo
O autor aborda as tendências históricas em cujo contexto se dá o surgimento do terceiro setor, reconhecidas como expressão polarizada dos ideais da Revolução Francesa (Liberdade, Igualdade, Fraternidade), buscando demostrar que só poderemos alcançar o desenvolvimento sustentável da vida social (ecologia social) na medida em que estes 3 ideais ou qualidades sociais básicas puderem estar integradas na ação social.
Neste contexto, traz referências para situar o papel do Estado frente aos demais setores, no aspecto legislativo (definição de direitos e deveres) e no aspecto executivo- na mediação do fluxo de recursos da esfera econômica para a esfera cultural e social visando a regulação objetiva da distribuição dos recursos para onde haja objetivamente maior necessidade social.
O autor
Jos Schoenmaker, 49, é psicólogo social formado pela USP em 1975. Durante 16 anos esteve à frente da Fundação Samuel, na mediação de recursos das agências européias de cooperação no desenvolvimento para organizações de base no Brasil. É fundador do Núcleo Maturi - Ecologia Social, uma rede de consultores independentes atuando na consultoria a processos de desenvolvimento institucional de OSC"s e na capacitação de gestores destas instituições.
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O DESENVOLVIMENTO DO TERCEIRO SETOR NA PERSPECTIVA DA ECOLOGIA SOCIAL
Introdução
Fui convidado pelo Instituto Fonte para proferir uma palestra no Seminário "3º Setor e Sociedade", situando as perspectivas e os desafios para o seu desenvolvimento futuro. No dia anterior, o Sr. Alceu Terra Nascimento havia proferido uma palestra sobre o tema, sob o título "O 3º Setor como fator de confluência da ação social para o ano 2000" 1, situando o 3º setor no contexto das transformações por que vêm passando o setor sem fins lucrativos no enfrentamento dos problemas sociais.
Referenciado nesta contribuição, quero retomar as grandes linhas históricas de sua exposição, aprofundando em alguns aspectos a análise das tendências que se expressam neste processo de transformação e o seu significado para a criação de condições para o desenvolvimento social sustentável, ou seja, da Ecologia Social.
Historicamente, Alceu aborda as seguintes etapas históricas, caracterizando-as do ponto de vista do enfrentamento dos problemas sociais.
- República Velha - o poder público se apresenta como ausente, indiferente no que se refere às políticas sociais. Os pobres constituíam-se como sujeitos sem direitos e objetos da bondade de seus benfeitores, em especial da Igreja, que detém o monopólio da atuação na área social, como reação no inicio deste século, a crise das oligarquias e a ascensão dos movimentos sociais urbanos (sindicalismo; comunismo, etc.);
- República Nova - o Estado Novo com Getúlio Vargas, como Pai dos Pobres, centraliza no Estado a responsabilidade de atender as reivindicações populares, atrelando as iniciativas autônomas e emergentes da sociedade civil (clientelismo como política oficial). A igreja mantém sua importância na assistência aos pobres, como obra de caridade/ filantropia. A Era Vargas entra em crise, por crescente oposição ao centralismo (econômico e social), pelo fortalecimento dos movimentos sindicais, exigindo "reformas de base".
- República Militar - o regime militar joga a sociedade organizada na clandestinidade e adota na área social uma atitude controladora. A Igreja se mantém como único espaço de atuação fora do controle direto do regime, e fomentadora dos movimentos sociais autônomos, financiadas pela cooperação internacional, principalmente Européia, cuja principal tarefa é de resgatar a democracia e o estado de direito no país.
- Nova República - a Constituição de 1988 estabelece como principio básico a estratégia de ampliar a participação da sociedade na esfera pública, ou seja, construir a sociedade a partir da Sociedade e sob controle dela (Leis Orgânicas, Conselhos, etc.) Neste contexto se dá o surgimento do 3º Setor e das assim chamadas OSC’s , fortemente inspirada e financiada pela filantropia norte-americana, com crescente participação de Fundações e Institutos empresariais locais. Marco importante nesse processo foi a Ação pela Cidadania contra a Fome, lançada por Betinho, que consegue pela 1ª vez mobilizar de maneira ampla recursos da própria sociedade brasileira para uma atuação social independente das Igrejas e do Estado.
Neste histórico percebe-se claramente que esse processo de transformação se deu a partir de tensões sociais que se expressam num pendular entre a mobilização da sociedade frente aos problemas sociais (movimentos sindicais e sociais) e centralização no Estado. Por trás destas tensões, se encontram visões predominantes, a que podemos chamar também de paradigmas, distintos, que queremos agora situar em seu contexto histórico.
A evolução histórica como uma cruz de tensões entre Leste e Oeste, Norte e Sul
Do ponto de vista histórico vivemos desde a Revolução Industrial numa época em que o setor econômico (O 2º Setor) se constitui em principal protagonista do desenvolvimento e da transformação da sociedade. Em épocas anteriores este protagonismo era claramente de outras esferas. Na antigüidade (Índia, Egito antigo, p.ex.) era da Vida Espiritual. Toda a vida social, inclusive a economia, era estruturada a partir da vida espiritual (Faraó como iniciado e sumo-sacerdote). Cabia a ela administrar a vida social e econômica do ponto de vista das necessidade do todo, do bem estar da totalidade dos seus integrantes. A partir da época greco-romana este protagonismo se transfere cada vez mais para o Estado (Império Romano, p.ex.), com o surgimento da política, das leis humanas (e não divinas) que passam a reger a organização social. Essa supremacia do Estado permanece assim até o fim da Idade Média, mesclado ao poder da Igreja, que juntas eram detentoras de todas as terras, base primeira de toda atividade econômica.
A partir do sec. XVIII a Revolução Industrial e a Revolução Francesa põe fim a esta hegemonia do Estado — a Revolução Industrial do ponto de vista econômico e a Revolução Francesa do ponto de vista político, clamando por ‘liberdade, igualdade e fraternidade". Em oposição a esta gestão da economia pelo Estado e pela Igreja surge o liberalismo do sec. XVIII, defendendo a livre-iniciativa como única e melhor forma de se promover o progresso social. A máxima do liberalismo está explicitada no pensamento de Adam Smith em seu livro "Estudo sobre a causa do progresso das nações", em que ele diz: "Se todos se empenharem da forma mais intensa e conseqüente possível pelo seu interesse próprio, disso resultará automaticamente o bem estar geral".
Na palavra "automaticamente" se expressa a "mão invisível" que, segundo Smith irá cuidar deste bem estar geral. A esta mão reguladora invisível hoje se denomina "mercado". O liberalismo está na origem do Capitalismo, como promotor da livre-iniciativa, da livre-economia e, neste contexto, da livre individualidade. Central neste paradigma está o ideal da Liberdade.
É inegável que a livre-iniciativa e a livre-economia trouxeram e trazem inestimável contribuição ao progresso tecnológico e material — basta olharmos para todas as facilidades e comodidades que a vida moderna nos traz- são verdadeiros "milagres". Por outro lado é inegável também, que a "mão invisível" não tem atuado no sentido previsto de se assegurar automaticamente a partir deste mesmo progresso o bem estar geral. A tendência natural observada neste processo é que cresce a desigualdade social, a distância entre ricos e pobres através da concentração do capital na mão de cada vez menos pessoas e organizações. Como reação a esta tendência surge o Marxismo, desembocando na "ditadura do proletariado" do Comunismo, abolindo a propriedade privada do Capital e colocando-a na esfera do Estado (Partido Comunista) , visando assegurar a "igualdade" de todos ao acesso e à utilização deste Capital. Se é inegável que o Comunismo/ socialismo trouxe significativo avanço em termos de igualdade social (p.ex. Cuba), é inegável também que este mesmo sistema aniquilou as liberdades individuais e democráticas e sufocou a livre iniciativa, fatores estes que levaram à sua insustentabilidade e ao seu esgotamento, marcado pela queda do Muro de Berlim e a implosão da URSS.
Nosso século XX foi profundamente marcado pela tensão entre estes dois campos, estas duas visões, em cujo contexto se desenrola a história sintetizada no início desta contribuição. Com a derrocada do modelo comunista, vivemos hoje sob a égide do "neo-liberalismo", e conseqüente promoção de livre-iniciativa não só no campo econômico (privatização da Economia/ Globalização) como também social. E neste contexto que surge o chamado 3º Setor, como iniciativa privada na esfera púbica. Surge como alternativa natural e bem vinda à excessiva centralização, burocracia, funcionalismo, ineficiência da atuação do Estado na esfera social.
É importante atentarmos que ligada ao surgimento do 3º Setor se encontra uma terceira corrente, expressa no fluxo de recursos dos países ricos, desenvolvidos, do Hemisfério Norte para os países pobres, subdesenvolvidos do Hemisfério Sul. No caso do Brasil, esse fluxo de recursos foi fundamental para viabilizar a organização popular e o surgimento das ONG’s, "cuja principal tarefa foi o de resgatar a democracia e o estado de direito no pais". E um fluxo de recursos (capital) resultantes de doações livres frente às demandas sociais, motivadas pela solidariedade, ou - em outras palavras - como expressão da fraternidade. Vimos que esse fluxo de recursos no inicio da década de 70/ 80 provinha principalmente de fontes européias. As palavras de ordem eram "conscientizar-organizar-mobilizar". Essa mobilização visava principalmente reivindicar do Estado o atendimento das demandas sociais, considerada de sua responsabilidade, sob a bandeira: "direitos do cidadão: um dever do Estado". Como expressão exemplar desta tendência temos ainda hoje o Movimento dos Sem Terra — sua estruturação foi financiada com recursos provenientes de doações livres, e sua atuação força o Estado a atender as demandas sociais (reforma agrária, assentamentos, crédito agrícola, etc.). Por sua vez, o atendimento das demandas/ direitos sociais pelo Estado, que como tal não gera seus próprios recursos, se dá por meio da cobrança de impostos ( =doações impostas). Sua responsabilidade é de distribuir estes recursos de maneira justa e eqüitativa frente às necessidades sociais.
A partir do final da década de 80 cresce o aporte de recursos e a influência da "filantropia" norte-americana, orientada para o fomento da "iniciativa privada no âmbito público". Ela se caracteriza pelo aporte de recursos doados livremente por organizações privadas da economia (empresas) para organizações privadas da esfera social (OSC’s), sem a mediação do Estado. Ela traz como qualidades a doação livre ao invés da doação imposta e promove a postura empresarial no campo social, orientada para a geração de resultados (lucro social e humano), com base numa organização transparente, eficiente e eficaz (accountability). Por outro lado, se levarmos esta tendência a seu extremo - ao estabelecer o vínculo direto entre organizações privadas da economia (empresas) com organizações privadas da esfera social (OSC’s), ela tende a abolir ou ao menos não deixar claro qual é neste contexto, o papel do Estado. Como diz Alceu Terra Nascimento em seu texto: "O agente mantenedor (obs.: inclusive Estado) cede lugar a um investidor, na maioria das vezes pontual, o que exigirá maior flexibilidade nas estruturas organizacionais maior eficiência na captação de recursos e maior visibilidade institucional". Como tendência, levada ao extremo, tende a excluir o Estado e a estabelecer o regime de mercado e de livre concorrência no fluxo de recursos da esfera econômica para a esfera social. O fluxo de recursos tende, neste regime, a se dirigir para os mais organizados, eficientes e visíveis, isto é os mais fortes, influentes e capazes, e não necessariamente para onde haja objetivamente maior necessidade social 2. A regulação objetiva da distribuição dos recursos para onde haja objetivamente maior necessidade social, se não trabalhada conscientemente, ficará a cargo de uma "mão invisível". Os agentes sociais, mesmo reconhecendo as qualidades trazidas pela postura empresarial também para a atuação no campo social, sentem esta tendência no ar como uma ameaça.
Desta forma, o 3º Setor não estará criando condições para um desenvolvimento social sustentável, nem poderá ser — em sentido pleno- "fator de confluência na ação social do ano 2 000", como muito apropriadamente o propõe Alceu Nascimento, considerando ser esta a sua grande vocação. Quais são então as condições para que o 3º Setor possa se desenvolver na perspectiva da Ecologia Social, da sustentabilidade, do desenvolvimento da vida social como um todo?
Vimos até aqui as principais polaridades e tensões que marcaram a ação social no sec.XX, suas virtudes e contribuições para a vida social e as ameaças inerentes à sua unilateralidade. Podemos representar isto esquematicamente da seguinte forma:
- O Capitalismo, fundamentado no liberalismo de Adam Smith, promovendo a livre-iniciativa, a livre-economia e a livre-individualidade, trazendo contribuição decisiva para o progresso tecnológico e material, mas refletindo-se socialmente em aumento das desigualdades sociais através da crescente concentração de capital na mão de cada vez menos pessoas e empresas (polarização Norte-Sul);
-O Comunismo, fundamentado no Marxismo, abolindo a propriedade do Capital e a iniciativa privada, introduzida na Economia Social Planificada gerida pelo Estado, levando ao totalitarismo (suspensão das liberdades individuais e democráticas) e inviabilizada por sufocar pela burocracia qualquer livre-iniciativa;
- A corrente da solidariedade, estabelecendo entre ricos e pobres um fluxo de recursos provenientes de doações livres para fins sociais. Vimos que a corrente européia se orienta mais para a organização da sociedade civil para reivindicar do Estado o cumprimento de sua responsabilidade no campo social, via cobrança de impostos (doações forçadas) enquanto a corrente norte-americana se orienta para o fomento da iniciativa privada no âmbito público, estabelecendo um fluxo direto de recursos entre organizações da esfera econômica e da sociedade civil, sem mediação do Estado, num regime de livre mercado e concorrência.
Questões centrais que se colocam são:
- O que se faz necessário para sanar a tendência inerente ao liberalismo de levar, ao lado do progresso tecnológico e material, a crescentes desigualdades sociais, sem que isso implique em centralizar no Estado a responsabilidade pelo atendimento das demandas sociais, via impostos?
- Qual o significado dos ideais expressos em cada uma das correntes mencionadas para o desenvolvimento social e como podem confluir para a uma ação social sustentável?
- Qual é neste contexto o papel do 3º Setor e do Estado?
Os fundamentos da Ecologia Social 3
Podemos dizer que a organização da vida social e do trabalho no âmbito da sociedade se dá mediante a estruturação de relações através da qual capacidades e recursos são mobilizados em atendimento a necessidades de outros.
Podemos representar isso da seguinte maneira:
Temos portanto 3 esferas complementares e interdependentes, que formam os 3 fios que tramam todo o tecido social: mobilização de capacidades; estruturação de relações e satisfação de necessidades.
Podemos agora olhar para o significado dos ideais expressos em cada uma das correntes mencionadas anteriormente como fundamentos para o desenvolvimento social e como podem confluir para a uma ação social sustentável.
- A mobilização de capacidades e recursos
A própria vida nos ensina que a mobilização das capacidades será tão mais frutífera quanto mais houver Liberdade de iniciativa, por motivação própria e não por imposição ou determinação externa. Por esse motivo a livre-iniciativa é mais eficiente e eficaz do que o trabalho dirigido a partir de fora, seja pelo Estado, seja pelo chefe. Por isso se busca hoje empreendedores em todos os campos, pois são estes que tem iniciativa própria e assim mobilizam mais e melhor as suas próprias capacidades. Por isso também é melhor que o trabalho social se realize cada vez mais pela livre-iniciativa, por empreendedores sociais e não por determinação do Estado. Por isso também é mais frutífero que os recursos sejam provenientes de doações livres e não de "impostos".
- O atendimento de necessidades
Numa sociedade regida pela divisão de trabalho, como a nossa, todo trabalho se orienta para o atendimento de necessidades de outros e seus resultados devem se mostrar a nível de sua real satisfação. Condição fundamental para que necessidades possam ser efetivamente satisfeitas é que elas sejam primeiramente percebidas e isto só é possível com base em interesse ativo no outro. É o que se chama hoje de "orientação para o cliente" — tentar perceber o que ele precisa como referência para meu próprio trabalho. É fundamental que essa orientação para o cliente permeie também a atuação das OSC’s, muitas vezes ainda estagnadas no nível do assistencialismo e pouco orientadas para a real promoção social.
A vida nos ensina que a satisfação das necessidades será tanto mais adequada quanto mais partir do interesse ativo pelas necessidades de outros e que será tão mais padronizada quanto mais visar o beneficio próprio ou a própria comodidade. O professor que "despeja" a matéria sobre seus alunos sem levar em contar as condições individuais de cada um em absorvê-la está padronizando seu ensino em função de sua comodidade própria e contribuirá menos para o desenvolvimento de seus alunos do que aquele que se orientar ativamente para as necessidades de cada um. Sendo assim, podemos dizer que a qualidade básica que orienta a adequada satisfação das necessidades é o interesse ativo, a identificação com as necessidades do outro, tomando-as motivo para minha própria ação. Em outras palavras — a qualidade fundamental requerida nesta esfera é a da "solidariedade" ou da ‘fraternidade".
No campo da ação social do 3º Setor isto coloca o desafio da "objetivação das demandas sociais" (consciência objetiva das necessidades) como referência para nortear a sua atuação social. Existe uma tendência natural de qualquer instituição se encapsular naquilo que está fazendo, sem buscar reorientar a sua atuação frente às reais demandas da clientela ou da comunidade. Também faz parte desta esfera a transparência na gestão dos recursos, tomando visível a que necessidades efetivamente responderam. O real fluxo dos recursos é um espelho fiel das prioridades de fato, evidenciando muitas vezes a tendência de os recursos ficarem represados em esferas intermediárias sem atingir seus pretendidos destinatários. No mesmo contexto se coloca a necessidade da avaliação como instrumento de medição dos resultados alcançados frente aos almejados e como condição para o aprimoramento da qualidade dos serviços.
- A organização das relações
Toda organização da vida social se fundamenta na estruturação de relações com base em acordos (constituição, legislação, estatutos, regimentos internos, contratos, tomadas de decisão, etc.). O vínculo entre organizações privadas da vida econômica (empresas) e OSC’s também se dão por meio de acordos estabelecidos entre as partes, por meio de um Plano de Trabalho , apresentando as necessidades, o que se propõe a realizar, resultados almejados, como isso será mensurado e avaliado, etc.. Sabemos por experiência que os acordos serão tão mais fortes e duradouros quanto mais forem estabelecidos com base em igualdade entre as partes e que serão tão mais frágeis quanto mais poder for exercido. Só é possível chegar a acordos justos quando cada uma das partes estiver em condições de participar em pé de igualdade na sua definição. Caso contrário, aquele que tiver mais poder fará prevalecer seus próprios interesses em detrimento dos do outro. A gestão participativa em todos os âmbitos da vida social (seja no âmbito institucional ou da sociedade) se coloca assim como exigência fundamental para o desenvolvimento saudável desta esfera.
Podemos situar nesta esfera também a função mediadora entre demandas e recursos/capacidades disponíveis/requeridos, cujo desafio maior é o de assegurar a "acessibilidade" daqueles que tem a demanda frente aos recursos e serviços (a serem) disponibilizados.
A nível da sociedade isto exige uma consciência objetiva da totalidade das demandas sociais, visando que a priorização da mobilização de capacidades e recursos possa se efetuar a partir do mesmo. Essa priorização representa novamente um acordo, entre os setores sociais que demandam recursos e os setores que deles dispõe para que sejam livremente mobilizados de forma a melhor atender as demandas sociais existentes. No âmbito da sociedade como um todo, a atuação mediadora no estabelecimento de acordos entre o 2º Setor, geradora de recursos (economia) e o 3º Setor (mobilizadora de capacidades frente às demandas sociais) é a esfera de competência própria do Estado e dos Governos (1º Setor), nacionais e supranacionais (Nações Unidas, p.ex.). Não lhe cabe nem ser a exclusiva detentora dos recursos (via impostos de qualquer natureza) nem a tomadora de iniciativa (através da prestação de serviços), mas sim atuar como mediadora, como reguladora do fluxo de recursos da esfera econômica para a esfera social e cultural. Os Conselhos Gestores de Políticas Públicas representam um espaço privilegiado para o exercício desta função a nível da sociedade. Seu adequado funcionamento depende fundamentalmente da sua representatividade, que por sua vez depende do efetivo envolvimento e participação da comunidade, viabilizada pela promoção da cidadania. No âmbito institucional esta função pode ser promovida pela formação de redes, mediando a mobilização de capacidades e recursos frente às demandas sociais.
Conclusão
Hoje temos uma excessiva concentração de recursos na esfera econômica, e dentro desta, uma crescente concentração de recursos nas mãos de menos pessoas e organizações. Na medida que estes recursos deixam de fluir para outro segmentos e esferas da sociedade, disso resulta um processo de gradual asfixia econômica, social e cultural, que se expressa em crescente exclusão social, miséria, criminalidade, subdesenvolvimento, etc.. Na medida que estes problemas se avolumam, como hoje está acontecendo, tomam-se uma ameaça a sustentabilidade do sistema que os gerou e estaremos diante de novas convulsões sociais, como as que marcaram o século XX, mas maiores e piores do que no passado, em função do próprio processo de globalização (como já sinalizado no Atentado de 11 de Setembro de 2001). Condição fundamental para a superação desse processo de asfixia social é a ampliação do fluxo de recursos da esfera econômica para a esfera social e cultural, de forma livre, consciente e responsável.
O 3º Setor poderá trazer uma contribuição decisiva nesta direção, tomando-se fator de confluência nas ações sociais no novo milênio, na medida em que conseguir integrar historicamente em sua atuação os impulsos sociais de liberdade, igualdade e fraternidade, como fundamentos para a Ecologia Social, ou seja, a sustentabilidade do desenvolvimento da vida social,. Espero que as considerações acima expostas possam servir de contribuição e estímulo nesta direção.
Jos Schoenmaker
Observações:
1. Alceu Terra Nascimento "Terceiro Setor- fator de confluência na ação social do ano 2000" . Fundação Maurício Sirotsky Sobrinho.
2. Como ilustração, o Projeto TAMAR, um projeto exemplar em termos de atuação em prol das Tartarugas Marinhas, na qual a Petrobrás investe milhões de dólares salvando milhões de filhotes de tartaruga, evitando assim sua extinção, ou a ACD-Teleton, que conseguiu o feito de reunir 6 canais de televisão numa rede de solidariedade e de apoio a uma única instituição: a Associação da Criança Defeituosa. São iniciativas exemplares no que se refere á mobilização de capacidades e recursos frente a demandas sociais/ambientais, ás quais não cabe nenhuma critica, muito pelo contrário - temos muito a aprender das mesmas! Mas supondo agora que todos os recursos para a esfera social tenham que ser transferidos desta forma da esfera econômica privada para a esfera social. A questão que se coloca é: de que forma se irá regular, do ponto de vista da sociedade como um todo, que o fluxo de recursos se dê para onde haja objetivamente maior necessidade, do ponto de vista da totalidade dos animais ameaçados de extinção, p.ex., no contexto do Projeto Tamar e da totalidade das crianças defeituosas, p.ex. no contexto da atuação da ADC? Como contraponto temos os Programas de Micro-Crédito destinados à promoção do auto-emprego. São bilhões de reais que hoje permanecem nos bancos, apesar da enorme demanda em meio ao crescente desemprego, por falta de instituições e pessoas qualificadas a mediar sua destinação aos fins propostos. Existem os recursos e existe a demanda, mas os recursos não fluem para onde há necessidade porque pouco se investe no desenvolvimento de capacidades para viabilizar o atendimento desta demanda.
3. Rudolf Steiner, um pensador austríaco que conviveu com o auge da tensão entre capitalismo e comunismo (Revolução Russa/Movimento Socialista) e das conseqüências da livre- concorrência que resultaram na eclosão da I Guerra Mundial, trouxe uma contribuição fundamental para a compreensão das condições para o desenvolvimento de uma Ecologia Social conforme exposto neste artigo.
Na iminência destas catástrofes sociais ele publicou uma série de artigos sobre a questão social, numa das quais enuncia o que chamou de Lei Social Principal, na qual podemos reconhecer o fundamento para uma Ecologia Social. Ele afirma que esta lei tem para a vida social uma validade tão exclusiva e necessária quanto uma lei natural para determinada área de fenômenos naturais.
A Lei Social Principal afirma que o bem estar da integridade social é tanto maior quanto menos cada um exige para si os resultados de seu trabalho, ou seja, quanto mais estes resultados são destinados a outros e quanto mais suas necessidades forem satisfeitas não pelo seu próprio trabalho mas pelo trabalho de outros.
O que quer dizer esta Lei? O bem estar social aumenta na medida que não trabalhamos para nós mesmos mas sim para outros, de forma que seu resultado esteja orientado para a satisfação de suas necessidades e não das necessidades próprias.
Rudolf Steiner diz, concluindo, que "o bem estar social será tanto maior quanto menor for o egoísmo". Desta forma a Lei Social Principal se coloca como antítese do enunciado de Adam Smith, que fundamenta o liberalismo.
Nossa sociedade moderna se fundamenta na divisão de trabalho, de forma que ninguém trabalha de fato para si mesmo - o que cada um de nós faz ou produz, se destina a atender necessidades de outros e nossas necessidades são satisfeitas não pelo nosso próprio trabalho mas pelo resultado de trabalho de outros. É esse o motor do progresso econômico, social e cultural. Basta imaginar que progresso seria possível se cada um de nós tivesse que produzir ele mesmo o arroz e feijão que come, plantar o algodão, fiar, tecer, costurar para se vestir, etc.. Geramos progresso porque trabalhamos uns para os outros, conforme indicado pela Lei Social. Mas também é verdade que, como seres egoístas que também somos, visamos assegurar através desse trabalho para outros o máximo de beneficio para nós próprios. Tentamos receber o máximo de retomo de nosso trabalho para nós mesmos e pagar o mínimo pelo trabalho de outros. Quando adquirimos um produto no supermercado buscamos a melhor qualidade pelo menor custo, mesmo que esse menor custo seja resultado, p.ex. de trabalho escravo infantil na China. Neste caso o que pago pelo bem adquirido não está mais orientado para satisfazer de forma adequada as necessidades daqueles que trabalharam para mim. E este aspecto está em contradição com a Lei Social Principal e na mesma medida contribuirá para gerar sofrimento e miséria social em algum elo da cadeia social.
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